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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

PALAVRAS ,PALAVRINHAS,PALAVRÕES OU PALAVRÓRIO

A classe era extremamente agitada, as brigas e os palavrões eram muito comuns, e os roteiros ou os blocos de conteúdos não davam conta das necessidades do grupo. Cada dia que passava, minha angústia aumentava mais, pois eu queria algo que não era o que as crianças desejavam talvez por não entender a necessidade daquilo tudo,quando saiam das paredes da escola e retornavam para seus casebres sobre as palafitas ou para as casas do conjunto Joanes.
De tanto matutar, e em contato com os responsáveis pelas crianças, descobri que o que mais fazia sentido para eles eram os “palavrões”, pois até mesmo as mães quando conversavam comigo, de cinco palavras ditas,  três tinha esta conotação. Em segredo, resolvi que iria alfabetizar meus alunos a partir do estudo destas palavras. Eu fazia o roteiro como todo mundo, apresentava para a coordenação, mas na sala passei a utilizar algumas das palavras das crianças como “gancho” (estava na moda pegar o gancho). Espero que o relato de uma destas aulas não venha a ferir os ouvidos  mais delicados, porém para que haja compreensão real, não poderei deixar de fazê-lo.
Num dia de segunda feira  (A) uma criança de dez anos me disse em meio a uma briga:
 -Pró ;  (G) mandou eu tomar no (c) . Perguntei a G o que era o tal  (c), e ele ficou sem graça pois não esperava que eu repetisse a palavra, respondendo “não sei”, ele era negro sarará e estava todo vermelho. Percebi pelo rubor dele, e pelos olhinhos arregalados do restante da turma que havia chegado o momento, questionei então, como é que se escrevia a tal palavra, chamando o ofendido para escrever no quadro, a risada foi geral, mas ele veio, descobri então que ele sabia quais as letras necessárias para escrever tal palavra. Perguntei quem no grupo tinha apelido, antes escrevi o meu “Bia” no quadro, ai cada um vinha e colocava o seu recebendo ajuda  com as letras que não identificavam ainda. Afixamos os apelidos na parede, juntamente com o nome verdadeiro de cada um na ordem alfabética.  Falei então que, assim como as pessoas colocam apelidos nas outras, elas colocam também em algumas partes do corpo, as vezes porque tem dificuldades em falar o nome verdadeiro, mas que é bom saber o nome verdadeiro também.Então pedi que o grupo me ajudasse a fazer uma lista,  com as palavras utilizadas para dar apelido ao ânus.

O processo formal de alfabetização deste grupo se deu assim. Combinei com o grupo, que os palavrões só deveriam ser usados em situações inevitáveis, e construímos as regras de convivência  acredito que a proibição pura e simples, estimula o uso, a compreensão é ainda o melhor caminho. A partir daí, os palavrões apareciam nas aulas como  situação de aprendizagem, eles descobriram inclusive, que se não aprendessem a ler, poderiam ser xingados por escrito. Todo o grupo se apropriou da escrita.  Na verdade eles tinham muitas hipóteses acerca dela,  mas não externavam, deixando-as adormecidas, preferindo desafiar os professores, talvez por não haverem sido estabelecidos os vínculos afetivos.

É muito importante que o professor tenha sensibilidade, bom senso  e humildade para saber quando avançar e quando retroceder em relação ao que   planeja, afim de não impor ao aprendente a arrogância da vontade do educador.Sabemos que é papel da escola ensinar, mas há que se levar em conta as demandas sociais e o desejo do sujeito que aprende. De nada valem os lindos planejamentos e a intencionalidade da escola, se eles  estiverem alheios ás condições sócio-culturais,econômicas dos alunos e de seus familiares.
Sei que o professor é guia orientador e portanto modelo para seus alunos e para a comunidade,e este modelo precisa estar coerente com os desejos morais e éticos da sociedade, por isto ao decidir pelo caminho acima descrito, corri o risco de colocar todo o meu futuro como educador em jogo,podendo ser considerada uma professora licenciosa e permissiva, tanto pela coordenação da escola como pela família dos alunos. Tais  reflexões  me causavam imensos temores, mas cada vez que olhava para trás e vislumbrava  o meu passado de dificuldades econômicas ou lembrava das experiências vitoriosas ou malogradas que tive na escola, aumentava a certeza de  que o risco era inevitável. Afinal estávamos lidando com sujeitos únicos, mas que os modelos educacionais insistiam em  “enformá-los”, e o risco dessa uniformidade  poderia vir a ser a exclusão, que levando em conta o contexto, a marginalização social seria inevitável.
Acabei por saber coisas da vida deles e das famílias, algumas vezes aconselhando os pais e intervindo nos conflitos que se estabeleciam entre eles. 

Mesmo depois de terem saído da escola, continuei recebendo bilhetinhos e recados amorosos, e os professores seguintes sempre me informavam sobre o andamento deles.

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